Violência sexual na infância causa traumas para toda vida: ‘Tínhamos medo e guardamos o segredo pra gente’

0
61


Mais de 4.690 crianças e adolescentes foram vítimas de algum tipo de violência no Tocantins. Nesta quarta-feira, 18 de maio, é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Casos de violência e abusos contra crianças preocupam no Tocantins
Reprodução/TV Anhanguera
Mais de 4.690 crianças e adolescentes foram vítimas de algum tipo de violência no Tocantins neste ano, segundo os dados disponibilizados pelo Núcleo de Coleta e Análise Estatística da Secretaria de Segurança Pública do Tocantins (Nucae). Até a última terça-feira (17) foram 228 casos de estupro ou estupro de vulnerável, mas os números também envolvem, ameaças, maus-tratos e diversos outros crimes. Além da violência e dor no momento do ato, os crimes provocam feridas que são difíceis ou até impossíveis de curar.
Especialistas ouvidos pelo g1 apontam que para além da educação e prevenção é preciso avançar no acolhimento às vítimas, neste sentido uma ação capitaneada pelo Ministério Público Estadual tem buscado um atendimento mais empático e especializado no estado.
Nesta quarta-feira, 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o g1 preparou uma reportagem com dados, orientações de especialistas e ações dos órgãos de proteção para garantir os direitos humanos a este grupo mais vulnerável.
Trauma para toda vida
Uma moradora de Palmas, de 33 anos, que não terá o nome revelado, relata não conseguir esquecer os abusos sexuais que sofreu durante a infância e adolescência. O agressor era o próprio pai e o crime acontecia dentro de casa.
“Ele não penetrava, mas algumas noites me tocava. Eu não entendia o que era isso porque eu era muito criança. Só depois que eu comecei a entender. A última vez que aconteceu eu pedi socorro para minha irmã, que me ajudou, me protegeu e relatou que também acontecia com ela. Nós tínhamos muito medo e guardamos esse segredo só pra gente”.
Anos depois a mulher fez uma denúncia. “Em 2018, no meu aniversário de 30 anos, eu processei o meu pai por pedofilia. Eu precisei processá-lo para me perdoar e depois liberar perdão para ele. Passei por um processo de cura e libertação e hoje estou em paz, em relação à isso”, disse.
Hoje a mulher é jornalista e faz acompanhamento psicológico. Ela também tenta alertar responsáveis por menores que podem estar sendo vítimas do mesmo crime. “Deixo o alerta para os pais, para observarem seus filhos. O abusador geralmente é uma pessoa muito próxima”, afirmou.
LEIA TAMBÉM
Como identificar possíveis sinais de abuso sexual em crianças?
A psicóloga Karlla Garcia Ferreira explica que além de fazer acompanhamento é importante que as vítimas ou testemunhas de crimes recebam assistência e acolhimento adequados durante o processo de investigação para não passarem pela revitimização – quando acabam tendo que “reviver” os traumas repetidas vezes.
Psicóloga fala sobre atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência
“É importante que essa criança seja assistida por uma equipe multidisciplinar e com atendimento psicológico que proporcione segurança e acolhimento e, a partir disso, investigar quais foram as consequências dessa violência. Seja a possibilidade de um estresse pós-traumático, sintomas de ansiedade ou depressivos, isolamento social, comprometimento cognitivo”, explicou a psicóloga.
Também é importante que a família seja acompanhada por especialistas. “Precisa psicoeducar a família, quando não há agressor, e essa criança sobre a importância de dar continuidade ao tratamento. Então é importante que a vítima não passe, no primeiro momento, pelo relato repetidas vezes, da violência que aconteceu”, disse a psicóloga.
O que é revitimização e como combatê-la
A revitimização ocorre quando uma vítima ou testemunha de crimes precisam relatar, várias vezes, uma cena de violência, inclusive de forma constrangedora ou na presença do agressor. A situação pode acontecer em delegacias, hospitais, atendimentos psicológicos, entre outros.
A secretária executiva do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca), Mônica Brito, explica que se trata de uma violência institucional e que muitos comportamentos podem configurar revitimização.
“Geralmente quando a criança ou adolescente passa por um processo grave e vem revelar [o crime], os interlocutores não acreditam na fala, questionam o conteúdo da denúncia, naturalizam ou banalizam a denúncia.[…] Quando se desvaloriza, questiona ou coloca a criança ou adolescente em situação vexatória, é uma revitimização. É quando a criança sofreu uma violência e o órgão público não atua nos limites da legalidade, respeito e empatia”, explicou Mônica Brito.
Buscando reduzir estes impactos o Ministério Público do Tocantins (MPTO) assinou um termo de cooperação técnica com órgãos e instituições que compõe a rede estadual de proteção à criança e ao adolescente. O objetivo é estabelecer ações para a prevenção e o enfrentamento das violações dos direitos das crianças e adolescentes.
O termo busca implantar um modelo de integração operacional entre estes órgãos, definindo fluxos e protocolos para o atendimento a esse público, seguindo a previsão da Lei 13.431, que estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência.
Promotor Sidney Fiori Júnior, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância, Juventude e Educação (Caopije)
Marcelo de Deus/MPE TO/Divulgação
O promotor de Justiça Sidney Fiori Júnior, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância, Juventude e Educação (Caopije) diz que entre as medidas adotadas para preservar as vítimas estão a escuta especializada e o depoimento especial.
“É um grande avanço porque o depoimento especial traz uma boa garantia para a vítima, de que ela não vai passar por momentos constrangedores. É muito mais garantir de direitos, evitando violações. Uma das atribuições do termo é garantir que os municípios tenham fluxo para atendimento das vítimas”, disse o promotor.
Ele explica que os atendimentos devem ocorrer em locais apropriados e acolhedores, com infraestrutura e espaços que garantam privacidade. Com um trabalho integrado entre os diversos órgãos, as vítimas não precisam reviver momentos de violência e passar por constrangimentos.
O objetivo é tentar fazer com que a rede de atendimento se comunique de uma maneira integrada para que a vítima não tenha que ficar repetindo o relato. Que ela receba o atendimento integral, se ela for vítima de um crime e tenha atendimento na área da saúde, atendimento na área assistencial e que possa falar, apenas uma vez, o que foi que aconteceu, para uma única pessoa. Um único depoimento dela vai ser compartilhado com todas as pessoas, com todos os órgãos e instituições que precisam ter acesso. Claro, tudo com segredo de Justiça.
O promotor conta que participou do primeiro atendimento seguindo as normas estabelecidas para evitar a revitimização e relata o avanço desta política pública no âmbito judicial.
“Nenhum Fórum tinha sala para depoimento especial. Então, desde 2017, 2018 nós começamos a trabalhar a Lei 13.431 aqui no Estado e hoje a realidade já é outra. O Tribunal de Justiça já conseguiu instalar algumas salas de depoimento especial. A primeira que passou a funcionar foi em Palmas. Inclusive eu fui o promotor a fazer a primeira audiência de depoimento especial no Estado”, disse.
O objetivo agora é ampliar o atendimento especial para todas as cidades, incluindo as menores, nos extremos do Tocantins.
Além do MPTO, assinaram o termo de cooperação o Tribunal de Justiça, Defensoria Pública Estadual, Secretaria Estadual de Segurança Pública, Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, Secretaria Estadual da Saúde, Associação Tocantinense dos Municípios, Secretaria Estadual do Trabalho e Desenvolvimento Social, Polícia Militar, Fundação Nacional do Índio no Tocantins e Secretaria Estadual de Educação.
Dados
Conforme os dados da Secretaria de Segurança Pública do Tocantins, durante todo o ano de 2021 foram 12.564 crianças e adolescentes foram vítimas de algum tipo de crime. O número cresceu pouco mais de 2% em relação a 2020, quando 12.234 pessoas de até 17 anos ficaram nesta situação. Neste ano já são 4.696 pessoas nesta faixa etária vítimas de algum tipo de violência.
No ano passado, 596 boletins de ocorrência de estupro de vulnerável foram registrados em todo o estado, uma média de 49,6 vítimas por mês. Os dados da SSP apontam que a maioria das vítimas está na faixa etária entre o fim da infância e o início da pré-adolescência.
Conforme dados de estatísticas criminais, o mês de agosto foi o que mais teve registros. Foram 67 vítimas em apenas 31 dias. Uma média de 2,1 vítimas por dia. Veja o gráfico abaixo:
Para os efeitos da lei, são considerados vulneráveis os menores de idade e também pessoas com deficiências ou em condições que as impossibilitem de se defender ou de discernir uma relação consensual de violência sexual.
Em 2022, até esta terça-feira (17), foram registrados pela Polícia Civil um total de 18 casos de estupro e 210 estupros de vulneráveis.
“A cada hora mais de três crianças sofrem violência sexual no Brasil. Esse é um dado estarrecedor e a sociedade precisa entender que isso é alarmante. É para isso que serve a campanha do dia 18 de Maio, que é uma data emblemática para que a gente possa alertar a sociedade, os pais, os educadores, diretores das escolas para que prestem atenção aos sinais que a criança acaba sempre apresentando”, afirma o promotor.
Como denunciar
O promotor explica que é preciso ficar atento aos sinais que as crianças e adolescentes vítimas de abusos podem demonstrar. São eles: violência, irritabilidade, depressão, tristeza profunda, mudança brusca de personalidade – criança que era feliz e fica triste -, além de tendências suicidas.
“A gente sabe que a maioria das violências acontecem dentro de casa. É necessário que essas crianças sejam ouvidas, que os sinais sejam repassados e nós estejamos em condições de entende esses sinais”, afirmou.
Denúncias podem ser feitas às polícias Civil e Militar, assim como aos conselhos tutelares. Outro canal de atendimento, em que é possível resguardar o anonimato, é por meio do Disque 100, que funciona 24 horas por dia, inclusive aos sábados, domingos e feriados.
Veja mais notícias da região no g1 Tocantins.

Fonte: G1 Tocantins